quinta-feira, 22 de julho de 2010

Obsessão

Nunca soube ao certo quando aquilo a começou a incomodar.

Talvez porque fizesse parte do ser humano observar as particularidades da vida alheia. Talvez por não querer ver os próprios erros. Ou talvez por vê-los demais, e querer, com toda a força, acreditar em erros alheios. Sentir que, como todo mundo, não era perfeita.

Reparava nos colegas de escritório que repetiam a toilette, no desequilíbrio de quem insistia em usar saltos sem a necessária perícia, nos erros de escrita, no pó dos móveis, nos livros de cabeça para baixo em estantes, garrafas quase vazias na geladeira. Via migalhas de comida, sabia quem boicotava dieta, quem abusava no vinho ao almoço e quem tentava em vão deixar de fumar. Ia catalogando imperfeições. Vivia num infinito mundo de detalhes.

Em casa era o vizinho que satisfazia o seu desejo de erros alheios. Observava atentamente a roupa que ele deixava estendida no varal. Sabia que ele não separava a as peças brancas e que, por isso, tingia sempre as camisetas quando lavava as calças azul marinho. Via cuecas gastas demais. Daquelas que já pediam aposentadoria há alguns anos.

Até que um dia, ao contar as meias, ficou radiante quando viu que tinha um número ímpar de pés a secarem ao sol. Riu-se com descoberta. Primeiro por dentro, baixinho. Depois, mais gargalhou sozinha na janela. Foi para o trabalho a pensar onde estaria a meia fugitiva. Nem quis saber das migalhas, não fechou gavetas entreabertas, não reparou em sapatos gastos. O mundo lhe passou ao lado.

Estaria atrás do sofá? Perto daquela pipoca que ele inadvertidamente deixou cair? Ou teria caído debaixo da máquina da roupa sem que ele reparasse? E dormia mal, sem saber onde estava a meia figutiva. O vizinho nem parecia se importar, e era isso que a incomodava mais.

Decidiu que não podia viver nesse mistério. Tinha que saber. Reuniu uma dose pequena de coragem e outra maior de loucura. Entrou com facilidade no apartamento. Vasculhou. Resistiu ao impulso de cuidar louça por lavar e de arrumar copos em cima da mesa. Tinha um objetivo.

Ali, naquele pequeno ecossistema de erros alheios, esqueceu de anotar a única falha que lhe seria útil. Uma falha nos sistemas da empresa que fez com que o vizinho retornasse mais cedo a casa.

A cena foi dantesca. Ela ajoelhada com a cara enfiada debaixo do tapete da sala. Ele abria a porta. Ele encontrou-a em sua casa. Ela encontrou a meia por trás do sofá. Junto da pipoca. Ele gritou de susto. Ela gritou: "Achei"!

Claro que nenhuma desculpa foi suficiente para livrar-lhe de uma visita à delegacia. Mas, enquanto prestava depoimento, reparava que o delegado tinha o terrível hábito de roer as unhas...

1 comentário:

Lari Reis disse...

Super divertido esse texto! Muito gostoso de ler, imaginei a cena do apartamento direitinho e criei a personagem aqui também, rs! ;*